Duas décadas depois do GNV para carros, montadoras investem em caminhões a gás
De olho na transição energética, montadoras estão levando adiante um ciclo de investimentos para a fabricação de caminhões movidos a gás natural no país.
O movimento ocorre mais de 25 anos após a popularização do combustível — que emite menos carbono que o diesel — em automóveis e décadas atrás da Europa no abastecimento de veículos pesados. Agentes do setor apontam o gás como a principal rota do transporte rodoviário de carga rumo à economia de baixo carbono.
A Scania, que detém 17% do mercado brasileiro de caminhões, incluiu em seu plano de investimentos uma linha de produção de caminhões movidos a gás natural veicular (GNV) e gás natural liquefeito (GNL) na fábrica de São Bernardo do Campo (SP).
A montadora projeta investimentos totais para os próximos quatro anos de R$ 2 bilhões (sem detalhar quanto será destinado a essa nova aposta). Já a rival Iveco, que tem participação de 6,8% nas vendas de veículos pesados no país, vai concluir até o fim de 2025 um conjunto de aportes de R$ 1,1 bilhão, que inclui uma linha de produção de veículos pesados a gás em Sete Lagoas (MG).
Alex Nucci, diretor de Vendas de Soluções da filial brasileira da Scania, diz que o caminhão a gás ainda é uma novidade incipiente no mercado brasileiro. Para essa transição ganhar fôlego, avalia, é necessária a participação do governo e de parceiros privados para prover a infraestrutura de abastecimento necessária:
— Fizemos parcerias com distribuidores de gás, criando rotas e identificando potencialidades. A comercialização desses caminhões começou com empresas com foco em ESG (sigla em inglês para ações ambientais, sociais e de governança). E saímos de zero a mil unidades em quatro anos — afirma, acrescentando que a fábrica brasileira passou a ser um hub mundial da marca, produzindo veículos a gás para a venda no exterior.
A aposta das empresas no segmento mira no futuro, no contexto imperativo da transição energética para deter o aquecimento global. A Scania prevê alta de 14% nas vendas de caminhões a gás este ano, chegando a 400 unidades, considerando mercado doméstico e externo. Para 2025, a expectativa é de alta de 25%.
Infraestrutura é desafio
Marco Querichelli, CEO da Iveco para América Latina, avalia que a substituição do diesel pelo gás como combustível para veículos pesados só é atrasada pela falta de estrutura de abastecimento dos caminhões em longas distâncias:
— O potencial do gás é absurdo, gigantesco. É o próximo passo da transição energética. O grande desafio é a infraestrutura estar preparada.
Para Vladimir Pinto, especialista em energia da XP, os investimentos sinalizam demanda promissora adiante:
— As duas montadoras são consolidadas no segmento global de caminhões a gás e grandes entusiastas da tecnologia. E ocupam espaço. A entrada de concorrentes pode ser difícil.
Na comparação com o diesel, o veículo a gás natural pode emitir até 20% menos CO2, ainda que o combustível também seja de origem fóssil. Já a redução de óxidos de nitrogênio, que também causam o efeito estufa, é de quase 90%. Outra vantagem é a menor emissão de material particulado, que podem causar doenças respiratórias e cardiovasculares. A diminuição dessa “fuligem” chega a 85%.
— São caminhões de tecnologia diferente, mas com o mesmo nível de entrega de performance — diz Nucci.
De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o setor de transporte correspondeu a 33% da energia consumida no país no ano passado. Os motores a diesel representam 43,4%, enquanto a fatia do gás natural foi de apenas 1,8%.
Para Camila Ludovique, pesquisadora de Planejamento Energético da Coppe-UFRJ, o momento é propício para a expansão da frota a gás. Mas ela frisa que o investimento obtém seu retorno por quilômetro rodado no longo prazo:
— Com o aumento (da participação) dos carros elétricos, o consumo de gás deve diminuir (em automóveis) nos próximos anos. O Brasil depende de transporte rodoviário, é deficitário em diesel (importa o produto) e o principal consumidor é o transporte de carga.
Entraves à expansão
Segundo a Anfavea, que reúne as montadoras brasileiras, o número de novos caminhões movidos a gás licenciados no Brasil no ano passado foi de 145, o equivalente a 0,13% do total. No primeiro semestre, foram 69 veículos pesados licenciados. No mesmo período, foram 65,1 mil movidos a diesel.
— Caminhões a gás são recentes no Brasil. São vendidos na Europa desde a década de 1980. Essa realidade vem mudando, e a expectativa é de aumento da malha de atendimento no curto prazo — diz Eduardo Freitas, vice-presidente da Anfavea.
Quando se observa o total da frota de caminhões em circulação no país, há pouco menos de 1,5 mil movidos puramente a gás ou híbridos (que podem alternar diesel e gás). Segundo a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás (Abegás), o número inclui caminhões que foram convertidos de diesel para híbridos.
Na China são 800 mil veículos pesados movidos à gás, com uma fatia de 7% do setor. Em abril, um a cada três caminhões vendidos por lá era impulsionado pelo combustível. Na Europa, que aproveita a canalização de aquecimento residencial para abastecer postos, são cerca de 475 mil veículos pesados a gás. Nos EUA, são 190 mil caminhões e ônibus usando o combustível.
Para Marcelo Mendonça, diretor técnico-comercial da Abegás, o aumento na frota a gás poderá se concretizar se houver políticas públicas para incentivar esse novo mercado, ajudando o Brasil a cumprir metas de redução de emissões de carbono. Segundo ele, são 210 milhões de toneladas de CO2 emitidas anualmente pelos transportes no país:
— Para replicar o crescimento que tivemos em carros a gás na frota pesada, é importante trabalhar em incentivo para acelerar a substituição.
Ao contrário dos automóveis movidos a GNV, não há redução da alíquota de IPVA para caminhões a gás, o que poderia ser um fator de atração. Além disso, no Brasil, a rede de abastecimento deixa a desejar. Algumas distribuidoras de gás criaram os chamados “corredores azuis” em rodovias em que há canalização paralela ao traçado, o que facilita a abertura de postos.
Um exemplo é o corredor implementado na Via Dutra por uma parceria entre a Naturgy o governo fluminense. Há 1,7 mil postos de GNV no país, segundo a Abegás, a maioria na faixa litorânea. Desses, em 2023, só 45 postos atendiam caminhões, que demandam equipamentos diferentes para um abastecimento mais rápido.
Parceria empresarial
Segundo especialistas, empresas que trocam sua frota por veículos pesados movidos a gás buscam certificações que reconheçam a pegada menor de carbono, mas falta uma definição mais ampla de meta de corte de emissões a atingir.
— O fato de usar gás natural é positivo para as metas de descarbonização e impacto ambiental. Com um mercado de (créditos de) carbono, empresas iriam seguir nesse sentido — diz Vladimir Pinto, da XP.
A Eneva, empresa de energia que atua na produção de gás, tenta impulsionar esse mercado. Lino Cançado, diretor-presidente da empresa, vê espaço para crescimento:
— É um mercado que vai se desenvolver com transportadores em rotas específicas, nas quais eles têm a produção e precisam levar para o porto, por exemplo. O caminho é colocar postos de abastecimento ao longo dessas rotas.
Eneva, Scania e VirtuGNL firmaram uma parceria para descarbonizar frotas. A VirtuGNL criou uma rede própria de abastecimento de gás natural liquefeito para operar caminhões-tanque que transportam o gás produzido pela Eneva no Complexo do Parnaíba para as operações da mineradora Vale, em São Luís, e da fabricante de celulose Suzano, em Imperatriz, no Maranhão.
Com investimentos de R$ 5,7 bilhões até 2030, a VirtuGNL pretende atuar também no transporte de grãos no Matopiba, região agrícola entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Quer fechar o ano com 200 veículos a gás próprios. Para 2025, a expectativa é que novos contratos quadrupliquem esse número.
Biometano pode ajudar a acelerar transição
Uma alternativa à dificuldade de distribuição do gás natural (que geralmente vem da produção de petróleo no mar) pode vir da capacidade de produção do biometano.
Gerado a partir da decomposição de detritos de fazendas (como o bagaço de cana), aterros sanitários e estações de tratamento de esgoto, este combustível também pode ser utilizado nos caminhões a gás sem que os veículos necessitem de qualquer tipo de alteração.
Essa alternativa pode contribuir para a criação de pontos de abastecimento de gás veicular onde não há gasodutos para a criação de “corredores azuis” com gás natural.
— Imagina um caminhão desses que sai do Mato Grosso para Santos. Precisa ter gás no interior. O biometano pode ser produzido em todo o país e é um indutor para a interiorização, que é ponto fundamental para a viabilização (do mercado de caminhões a gás) — diz Vladimir Pinto, especialista em energia da XP.
O analista observa que todas as cidades têm aterros sanitários, que podem ser aproveitados para a produção do gás. Com o uso do biometano, a redução de emissão de CO2 dos veículos é ainda maior na comparação com os movidos a diesel, alcançando 95%.
Solução para insegurança
Segundo um estudo da USP publicado no fim de junho, o Brasil utiliza apenas 1,5% da sua capacidade de produção de biogás. Para se tornar biometano, o biogás passa por um processo de purificação. O Brasil produziu, em 2019, cerca de 1,3 bilhão de metros cúbicos (m3) de biogás, enquanto o potencial de produção do país era de cerca de 84,6 bilhões de m³.
Com o devido tratamento, a oferta de biometano poderia chegar a 44,7 bilhões de m³, cerca de 80 vezes a capacidade instalada hoje, de 522 milhões de m³. A estimativa conservadora é a de que o país possa produzir, até 2030, 7,3 bilhões de m³ do gás por ano.
Para Geraldo Lemos, pesquisador que liderou o estudo, o aumento da disponibilidade e a maturação econômica do setor demandam incentivos públicos, como os impulsos recebidos pela indústria petrolífera para se ampliar:
— O desenvolvimento do biometano pode ser favorecido se os entes federados atuarem colaborativamente, contribuindo para o crescimento do mercado. A insegurança que empresas enfrentam pode ser diminuída se o ambiente normativo puder ser melhorado.
Em Santa Catarina, a Cetric, empresa de gerenciamento de resíduos, utiliza caminhões a gás para fazer a coleta dos detritos dos clientes. O combustível dos veículos é gerado pela própria empresa, através do tratamento do lixo coletado.
Há na companhia projetos para instalação de postos de biometano ao longo de duas rodovias que cruzam o estado, com o objetivo de criar infraestrutura para impulsionar o uso do gás como combustível na logística rodoviária do Estado.
Autor/Veículo: O Globo